Depois de tanta enrolação, finalmente foi sorteado o primeiro país para o Literatura no Globo: Moçambique. Lamento dizer que, mesmo com tantos autores maravilhosos, eu não fugi do óbvio: tive certeza de que finalmente leria algo do Mia Couto (de quem eu já era fã, por influência da professora de literatura mais maravilhosa que eu conheço). Cobrado pela FUVEST e com grande carga histórica/cultural de Moçambique, Terra Sonâmbula foi a escolha perfeita para abrir o projeto <3
ENREDO
Muidinga viaja junto ao velho Tuahir, fugindo da
guerra e caminhando “à espera do adiante”. Ao encontrarem um machimbombo* (gíria para ônibus) queimado, a dupla decide parar ali para repousar. Enquanto se
arrumavam no lugar, o miúdo encontra uma mala cheia de cadernos manuscritos e
passa a lê-los todas as noites, nos introduzindo à segunda linha da narrativa.
Desde a morte de Taímo, que “sofria de sonhos”, até o encontro com a
resplandecente Farida, Muidinga e Tuahir vão compartilhar das histórias
contidas nos cadernos de Kindzu.
* Eu achei um post que fala sobre como foi viajar por Moçambique de machimbombo, é bem interessante e vale dar uma lida!
CONTEXTO HISTÓRICO
Na década de 1960, Moçambique vivenciou uma onda de manifestações contra o domínio colonial português. Com o desenvolvimento da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), as coisas tomaram um rumo mais radical e culminaram em uma guerra anticolonial armada. O embate contra as forças coloniais durou cerca de 10 anos e, em 25 de junho de 1975, foi proclamada oficialmente a independência de Moçambique.
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Em meio à crise econômica causada pela saída brusca dos portugueses, o país viu-se em uma guerra civil. A principal disputa interna pelo poder era entre a já conhecida FRELIMO e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), um novo partido opositor. Os conflitos ocorreram de 1976 a 1992, deixando milhares de vítimas pelo caminho.
Terra Sonâmbula, publicado em 1992 (ano em que foi assinado o
Acordo Geral de Paz entre os partidos), retrata o período final desses
conflitos. Tuahir, Muidinga e Kindzu vagam sem rumo certo, desorientados, e nos
mostram a vida de um país tomado pelos horrores da guerra. Para o povo
abandonado e assolado pela pobreza, sonhar é a rota de fuga da cruel realidade.
OS SONHOS DE UMA TERRA SONÂMBULA
Mesmo com os conflitos envolvidos e a crua realidade do
romance, Terra Sonâmbula tem uma veia sonhadora, esperançosa até, que luta pela
sobrevivência. Esse viés onírico nos expõe à magia profunda e misteriosa
daquela terra, onde a divisão entre sonhos e realidade há muito se perdeu.
Acho que, de certo modo, Terra Sonâmbula é como um tear de sonhos
interpostos. São histórias entrelaçadas, vidas fadadas a se cruzarem e se
separarem, formando uma obra delicada e intrincada. Unindo traços do realismo mágico com a arte tradicional
africana de contar histórias, Mia Couto criou uma narrativa única.
PERSONAGENS
Algo que se destaca em Muidinga é sua construção como
personagem. Ele não se lembra do próprio passado, tudo que sabe é que está
viajando com Tuahir e se escondendo da guerra. Após uma doença que quase o
levou à morte, o miúdo teve a chance de se “meninar” outra vez, uma folha
apagada e reescrita com a ajuda de Tuahir.
Já Kindzu é o oposto, o que nos faz pensar até que ponto se
estende a ligação entre os dois. Kindzu vive sua história, mas no fim renuncia à
lembrança. Era uma página escrita que, por vontade própria, apaga seu conteúdo.
Acendo a história, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.
O terceiro personagem que eu quero citar é a própria terra. Os
cenários parecem gritar ao longo de toda a obra, misturando a brutalidade da
guerra com a passividade do sonho. A terra sonâmbula não repousa ou dorme,
permanece insone em busca de sobrevivência e alento. E é no sonho, na crença,
nos laços formados, que a busca pela esperança ganha forças.
ESCRITA E REGIONALISMOS
Mia Couto tem uma escrita poética, envolvente, e seu
trabalho de contar e unir histórias é formidável. As palavras pertencem a um
lugar mais além, com raízes mais profundas, e ao mesmo tempo tem galhos tão
atuais quanto familiares a nós. Foi uma experiência incrível ler o português de
Moçambique, um idioma que é nosso e ao mesmo tempo não o é.
Terra Sonâmbula é uma leitura incrível, mas não pode ser
considerada fácil. Além do uso de frases densas e figuras de linguagem que
exigem atenção redobrada, o livro é profundo e diz muito mais do que está
contido em suas páginas. Amei esse livro, mas, sendo sincera, sinto que não
entendi nem metade do que Mia Couto quis nos passar. São várias camadas
sobrepostas com genialidade e desenvoltura, o tipo de livro que deve ser relido
e nos mostra novas facetas a cada página virada. Terra Sonâmbula é uma obra essencial
e sensível, cujo legado marcou a literatura africana, lusófona e mundial.
LITERATURA NO GLOBO
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6 Comentários
UAU! Que incrível! Fiquei com mais vontade ainda de ler! Ansiosa para mais resenhas ao redor do mundo. ♡
ResponderExcluirAaaa que bom que gostou! E pode deixar, logo mais trago outros países ❤
ExcluirEu amo a sua escrita e ler essa resenha me fez viajar pro seu cantinho e pra Moçambique! Não imaginava que a Terra, do título, era mesmo uma personagem e isso me fez ter muito mais vontade de ler. Fuvest, me aguarde! Vou usar sua resenha para estudar e estou muito animada para conhecer mais esse mundo!
ResponderExcluirVocê não sabe como eu fico feliz em ouvir (ou ler kkk) isso! Espero que você goste da leitura, eu tenho certeza que vc vai passar na fuvest e ser uma veterinária maravilhosa ❤
Excluireu amo esse livro, li para o vestibular, mas se tornou um dos meus favoritos
ResponderExcluirSimm, ele é tão maravilhoso ❤
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